quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Bienal Afro-brasileira do Livro

BIENAL AFRO-BRASILEIRA DO LIVRO

Em nome das instituições organizadoras da Bienal Afro-Brasileira do Livro, Associação Cultural Refavela e África 900 – Centro de Referência Politica, saúdo os presentes e os convido a assumir um compromisso histórico de transformar esta iniciativa num marco definitivo da trajetória de afirmação existencial e civilizatória da presença negra na sociedade brasileira.

A importância histórica da Bienal Afro-Brasileira do Livro pode ser dimensionada em diversos planos. Nesta abertura das atividades, quero destacar a radicalização da ousadia democratizante que as iniciativas protagonizadas pelo povo negro tem demonstrado, no decorrer dos cinco séculos de formação inconclusa da identidade nacional e da sociedade brasileira. É nesta magnitude que situo a realização da Bienal Afro-Brasileira do livro. Um marco tão relevante quanto a formação dos quilombos, a engenhosa constituição da capoeira, a estratégica reconstrução política, civilizacional e espiritual das religiosidades de matrizes africanas, a mobilização popular do abolicionismo radical de Luiz Gama, a organização política exemplar da combativa Frente Negra Brasileira, o revolucionário Teatro Experimental do Negro, a reconstrução contemporânea da identidade negra reafirmada pela criação do Ilê Aiyê, a afirmação pelo Movimento Negro do 20 de novembro como dia nacional da Consciência Negra, a conquista pelo povo negro das iniciais políticas de ações afirmativas e promoção da igualdade racial, a articulação nacional de pesquisadores negros, etc.

A relevância estratégica desta iniciativa se afirma, também, pela reapropriação daqueles instrumentos e formas culturais usurpadas pela monocultura européia, impregnada de etnocentrismo, de fraude histórica e de negação da alteridade-diversidade. Refiro-me à produção escrita. Inobstante o domínio milenar da escrita por povos e civilizações africanas – só pra ilustrar podemos citar os hieróglifos egípcios, a escrita ideográfica dos Akan-Ashanti, repreentada pelos símbolos adinkra, dos quais entre nós é bastante conhecido o sankofa; a escrita nsibidi, dos povos do sudoeste do Camarões de do Sudeste da Nigéria, a escrita tsona ou sona, utilizadas por povos bantus de Angola e Zâmbia – mesmo assim, uma das principais fraudes históricas produzidas pelo eurocentrismo tem sido a negação da capacidade de expressão escrita dos registros existenciais dos povos negros.

Daí o significado estratégico da Bienal Afro-Brasileira do Livro. Trata-se de otimizar a desmistificação já realizada secularmente em nossa sociedade por mulheres negras e homens negros  que, mesmo contra todos os obstáculos, produzem poesia, romance, ciência, jornalismo, filosofia, conhecimento religioso, etc.

Não se trata, aqui, de inventar a roda. Há pelo menos 150 anos, autores negros trilham o caminho da produção e publicação de seus livros no ambiente hostil da sociedade racista brasileira.

Trata-se de colocá-la para girar velozmente na direção por nós escolhida. Assegurar espaço, visibilidade, reconhecimento e estruturar as condições de democratizar o acesso às ricas fontes civilizacionais retratadas pela produção intelectual negra no Brasil.

A partir da Bienal afro-Brasileira do livro e do que ela pode desencadear, superaremos definitivamente o tratamento minorizador e discriminatório reservado às expressões civilizatórias de matrizes africanas em nossa sociedade. Rejeitaremos o epistemicídio sistemático realizado por universidades e institutos de pesquisa brasileiros. Não há mais lugar para falarem por nós, como ainda insistem intelectuais e acadêmicos que buscam perigosas reinvenções da farsa da democracia racial, resistindo às políticas afirmativas de promoção da igualdade racial. Não há mais lugar para reduzirem nosso sofisticado acervo civilizatório a expressões folclóricas.

Sem prejuízo da manutenção de formas tradicionais de expressão intelectual, como a literatura oral e a mito-poesia de tradição africana, avançaremos para consolidar a produçãoe publicação literária e a ciculação das idéias da ficção e da ciência e valores estéticos, éticos e políticos do povo negro brasileiro.

Portanto, resgatando nossos históricos enfrentamentos neste terreno, dedicamos esta Bienal Afro-Brasileira do Livro a algumas personagens fundamentais, que construíram as condições para estarmos aqui, hoje, celebrando e conquistando novos territórios:

A principal homenagem é destinada a Maria Firmina dos Reis, mulher negra, nascida em São Luís, que publicou em 1859, há exatos 150 anos, o primeiro romance escrito por negros numa perspectiva do olhar negro sobre a sociedade brasileira em formação. A obra de natureza abolicionista denomina-se Úrsula. A trajetória de vida de Maria Firmina dos Reis, indicava, profeticamente, os obstáculos que seriam enfrentados pelos escritores negros brasileiros. Apesar dos méritos pessoais, comprovados pela aprovação em concurso público para o magistério, aos 22 anos, assim como pelo talento literário representado por produção diversificada: romance, poesia, crônicas, pesquisa sobre cultura musical popular e composições musicais; morreu aos 92 anos, sem o devido reconhecimento de sua grandeza intelectual. Mas Maria Firmina dos Reis nos deixou uma fantástica lição: quando publicou Úrsula, em 1859, fez questão de registrar com mordaz ironia que tinha a certeza de que a obra seria recebida “com riso mofador” e “indiferentismo glacial”, mas mesmo assim, fazia questão de coloca-la “à lume”.

Queremos fazer, também, outros registros relevantes: homenagear a quase centenária trajetória política e intelectual de Abdias do Nascimento, com mais de 20 livros publicados, e uma inestimável contribuição política à sociedade brasileira. Homenageamos, também, os Cadernos Negros, publicados há 31 anos, divulgando escritores negros contemporâneos, sob a direção do Quilombhoje Literatura. Homenageamos a memória do poeta Oliveira Silveira, recentemente falecido, autor da proposta de celebração do 20 de novembro como data do povo negro brasileiro.

Assim damos por aberta a Bienal Afro-Brasileira do Livro. Que sejam proveitosas nossas atividades e inciativas. AXÉ.

Samuel VIDA

Samuel AZEVEDO

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